quarta-feira, 12 de maio de 2010

A mulher do poeta

Era sem graça a mulher do poeta – como não podia deixar de ser. Musas pertencem à noite, às janelas. Mulheres-esposas são feitas de outra matéria: matéria tranqüila, parideira, com cheiro de amaciante de roupa.


Ela sabia disso tudo, e não lhe doía muito. Sabia que nenhuma canção dele era sua, mas poeta era assim, não é mesmo? Muitas vezes ela estava, e ele, não. O olhar perdido de dia, a chave discreta na porta às quatro da manhã, os dedos sujos de tinta. Amá-lo era amar isso. Depois, ele voltava. No meio tempo, ela cozinhava, cuidava das roupas, criava filhos, cerzia meias. Passava anos.


Não se sentia especialmente entediada – tinha um pouco de sono, só, no dia em que aconteceu. Derek era o nome dele, pode? Nome esquisito. O cabelo era um ninho de mafagafos, no alto de uma árvore muito alta.


Não sabia a mulher o que dera nela. Algo rodava no peito, subia pela garganta, saía quente pelas narinas. Subia uma vontade imensa de fazer bordados.


Desse dia, as mãos se prenderam em trabalho atrás de trabalho. Saíam pavões, elefantes, girafas. Flores, maçãs e abacaxis. Cenários em tapeçarias, barras em saias. As vizinhas compravam, os olhos brilhavam, era uma festa! Os filhos brincavam na rua todo tempo, algum pó se acumulava na cristaleira. Linha não tinha suficiente pra tanta agulha e buraco de tela.


Do seu lado do sofá, o poeta enxergava os fiapos coloridos pelo tapete. Também via todo o resto, os modos ciganos do coração da esposa, em angústia contida pelos desenhos de cores fortes.


É claro que ele entendeu o que se passava – é disso que tratam os poetas, afinal. Danou-se de raiva, não sabia o que fazer: revirou roupas, revistas, cadernos de receitas; pôs vigias na noite e no dia da mulher. Mas ela não saía de casa, não olhava a janela. Toda conversa dela era com agulhas.


Enlouquecido, besta, chegou à mulher e disse que bastava de bordados. Quando ela perguntou por que, ouviu o argumento inescusável: se você me ama, pare.


Passou mal a noite toda, banhada em suor e com o estômago enjoado. Virava pra lá e pra cá na cama. Foi só bem perto das seis da manhã que soube o que fazer. Assim, tomou banho, pôs-se bela e saiu pela cidade. Encontrou o moço de nome estranho jogando sabe lá o que, nem se lembra onde. Ele pareceu adivinhá-la e muito pouco foi dito do começo ao fim, do beijo ao adeus.


Estava calma novamente. Não precisava mais de bordados. Podia criar filhos, ser uma mulher de poeta. Mas, em nome da paz que reconquistara, protegia da vista do marido seus olhos de melancolia cotidianos.

Um comentário:

  1. CHOCADO!!!

    Seu Blog é uma inspiração, os textos são preciosos, foi uma descoberta surpreendente ― e olha que eu comecei a ler já antecipando ficar de algum modo impressionado... Afinal, você é alguém que se nota primeiro pela inteligência, o que possui de mais expressivo. Mesmo assim eu não estava em hipótese alguma preparado para o caráter da sua arte, sua literatura em carne viva. Suas palavras vão fundo, você às leva tremendamente a sério, e isso se evidencia a cada curva da leitura. Tanto a ficção lírica, A MULHER DO POETA, quanto a crônica A DOR. E A ROTINA., assim como a introdução INTRODUZINDO. UI., tiveram o efeito constante de lembrar à minha mente (o leitor) o quanto um belo e bem concatenado arranjo de palavras pode ser inebriante. Sua escrita dá vontade de escrever. (Estranho isso?) Espero que você pare de engatinhar e comece logo a correr.

    Beijos, SuperFê
    Quim.

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